3 de janeiro de 2012

"Nesta ilha bucólica de Chiloé, a minha agitação do passado parece incompreensível. Não sei que reboliço interior era aquele que antes não me dava tréguas, porque motivo saltava de uma coisa para outra, sempre à procura de algo sem saber o que procurava; não consigo recordar com clareza os impulsos e sentimentos dos últimos três anos, como se a Maya Vidal de então fosse outra pessoa, uma desconhecida. Falei disto com Manuel durante uma das nossas raras conversas mais ou menos íntimas, quando estamos sozinhos, chove no exterior, faltou a luz e ele não se pode refugiar nos seus livros para escapar ao meu palrar, e Manuel disse-me que a adrenalina é viciante, habituamo-nos a viver no fio da navalha, não podemos prescindir do melodrama, que no fim de contas é mais interessante do que a normalidade. Acrescentou que na minha idade ninguém deseja paz de espírito, estou na idade da aventura, e este exílio em Chiloé é uma pausa, mas não se pode transformar numa forma de vida para alguém como eu. (...) Tinha emagrecido vários tamanhos de roupa, tinha os ossos salientes nas clavículas e nas ancas e as minhas pernas, antes tão fortes, metiam dó. Não tive oportunidade de me pesar até dezembro, e então descobri que tinha perdido treze quilos em dois meses. As casas de banho públicas eram antros de delinquentes e pervertidos, mas não tinha outro remédio senão tapar o nariz e usá-las, já que as de uma loja ou de um hotel estavam fora do meu alcance, ter-me-iam expulsado dali aos empurrões. Também não tinha acesso às casas de banho das estações de serviço, poruqe os empregados negavam-se a emprestar-me a chave. E, deste modo, fui descendo com rapidez os degraus do inferno, como tantos outros seres abjetos que sobreviviam na rua mendigando e roubando por um punhado de crack, um pouco de metadona ou de ácido, um gole de algo forte, áspero, brutal. Quanto mais barato o álcool, mais eficaz, exatamente aquilo de que eu precisava. Passei outubro e novembro da mesma forma, não consigo recordar com clareza como sobrevivia, mas lembro-me bem dos breves instantes de euforia e, depois, da caçada indigna para obter outra dose. Nunca me sentei numa mesa, se tinha dinheiro comprava tacos, burritos ou hambúrgueres, que a seguir vomitava sacudida por arcadas intermináveis, de joelhos na rua, com o estômago em chamas, a boca rebentada, chagas nos lábios e no nariz, nada limpo nem amável, lixo, vidro partido, baratas, cacos, nem um só rosto na multidão que me sorrisse, nem uma só mão que ajudasse, o mundo inteiro estava povoado de traficantes, agarrados, chulos, ladrões, criminosos, putas e loucos. Doía-me o corpo inteiro. Odiava aquele corpo lixado, odiava aquela vida lixada, odiava não ter a vontade lixada de me salvar, odiava a minha alma lixada, o meu destino lixado. Em Las Vegas, passei dias completos sem cumprimentar ninguém, sem receber uma palavra ou um gesto de outro ser humano. A solidão, aquela garra gelada no peito, venceu-me de tal forma que não me ocorreu a solução simples de pegar num telefone e telefonar para a minha casa em Berkeley. Teria bastado isso, um telefonema; mas por essa altura eu tinha perdido a esperança. (...)"
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2 comentários:

  1. Ofereceram-me esse livro pelo Natal, mas ainda não tive oportunidade de lê-lo. Assim que acabar o que estou a ler, esse deve ser o seguinte, pois li a cidade dos deuses selvagens e adorei :)
    Beijinho

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