24 de agosto de 2011

"Suavemente, fechei a porta da casa de banho atrás da minha mãe. Permaneci no quarto vazio, ouvindo o som da água a correr e observando os morcegos a mergulhar no escuro do lado de fora da janela.
O meu coração estava repleto de uma mágoa impregnável e duradoura. Indirectamente, o meu pai podia ter contribuído para a morte de Saffie. Se tinha sido o amante que a tinha matado. E Fleur tê-lo-ia conhecido.
Durante esses momentos, compreendi que, quando a vida em comum dos meus pais chegou ao fim, o meu pai só tinha trinta e dois anos e a minha mãe vinte e cinco. Se ele tivesse vivido, o casamento deles não teria resultado. Era impossível que resultasse.
Teríamos crescido menos dependentes dele. A minha mãe ter-se-ia apaixonado, como aconteceu mais tarde, e tê-lo-ia trocado por Fergus ou por outro homem. O meu pai ter-se-ia tornado mais promíscuo e menos cauteloso. A vida deles em comum não teria tido provavelmente um final feliz. O final feliz que tem habitado os meus pensamentos, toda a minha vida, apesar do meu amor por Fergus.
Foi preciso saber que o meu pai era homosexual para compreender isto. Mas agora, compreendendo este simples facto, sentia-me velha e cheia de remorsos.
Pensei em Jack e na desigualdade do nosso amor. Cingi o meu ventre inchado com os braços. Jack fora extremamente paciente, na esperança de que eu dissesse as palavras que significariam o meu compromisso com ele, com o nosso filho e uma vida a dois.
Pensei em Fergus, como fora terno com Fleur, esperando, porque a amava profunda e altruisticamente. Compreendi como se tinham tornado próximos, vivendo a sua vida absolutamente juntos, com toda a sua tragédia e felicidade.
Era isso que eu desejava. Desejava tudo isso com Jack. Tinha agora a certeza absoluta. A minha vida era ao lado dele e tinha de ligar-lhe a dizer-lho. Tinha a sensação de que era o meu primeiro acto verdadeiro reflectido. Era uma mulher adulta. Tinha trinta e três anos, era muito mais velha do que Fleur fora na sua vida com o meu pai.
Haveria de acarinhar sempre a recordação do meu pai porque era a minha recordação, um homem grande e belo que nos fazia guinchar de riso. Um homem que nunca envelheceria e se tornaria irritável. Um homem que era um enorme rochedo sólido e trazia felicidade onde quer que fosse. Mas era também o mesmo homem que, sabendo o que era, se casara com uma jovem bailarina e a deixara virar as costas ao seu talento, por ele, quando devia estar consciente do perigo. Sabia, sabia a que ponto ela o idolatrava em absoluto. Destroçou-lhe o coração, o pai que eu amava. Destroçou o coração da minha mãe e ela nunca usou isso como uma desculpa com ninguém. Quis que eu conservasse o pai encantador da minha infância e, ao fazê-lo, quase destroçou também o coração de Fergus, obrigando-o a assistir diariamente aos meus esforços para a punir.
Recordei como a minha avó fora dura com ela. Laura considerava Fleur fraca e irresponsável. Pergunto-me se o meu avô suspeitava. Sempre fora muito chegado a Fleur e sempre a protegera.
Saio para uma noite tão quente que o ar é como veludo nos meus braços nus. O sol deixou linhas onduladas e escarlates. Nuvens escuras, com a forma de charutos, tingidas de dourado, pairam sobre um mar que daqui se move imperceptivelmente, pequenos reflexos acendendo as ondas.
Detenho-me, apoiada na balaustrada do alpendre, consciente das minhas mãos na madeira, dos aromas transportados na noite. Flores, especiarias, o leve cheiro dos esgotos; música chinesa e uma melopeia aguda de vozes. Os fantasmas do meu pai e de Saffie parecem suspensos no agitar seco das palmeiras.
Mas o que estou verdadeiramente a pensar é na extraordinária coragem da minha mãe. O amor e lealdade a David perduraram muito para além da sua morte. Tarde de mais, sei que é possível amar duas pessoas de modos muito diferentes. Um amor não anula o outro mas faz tão parte dele como Fergus era parte da vida do meu pai e da de Fleur.
Já não tenho lágrimas mas guardo mágoa. Não posso mudar a vida da minha mãe mas posso alterar a obstinada passagem da minha. Sempre que o meu filho se mexe dentro de mim, sinto-me mais próxima de compreender Feur. Não posso ordenar os meus pensamentos nem compreender as minhas emoções numa questão de horas e sei que aquilo que sinto agora se transformará noutra coisa. Mas tem de ser algo com que eu seja capaz de viver e que seja capaz de aceitar.
Toda a minha vida desejei regressar a um tempo de segurança e felicidade, quando éramos uma verdadeira família. A minha mãe e o meu pai, eu e a Saffie. Quando o sol tropical batia mas nunca queimava. Quando as chuvas eram velozes mas nunca ninguém se afogava nos esgotos da monção. Quando eu e Saffie desenhávamos pequenas casas quadradas com janelas e um caminho no jardim com flores e os traços estilizados de uma mãe e um pai com caras felizes e sorridentes.
Foi disto que Fleur me protegeu intrepidamente toda a minha vida. Do momento em que uma pessoa se apercebe de que nada disso existe; que não passa de uma ilusão, a luz do sol e os rostos sorridentes. É o que se esconde atrás que conta.
Penso em Jack. "Não há azar", é o que ele diz sempre, como é típico dos neozelandeses, aconteça o que acontecer. "Nao há azar, querida."

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