4 de fevereiro de 2010

Cântico Negro

"Deveríamos ter coragem para usar o "NÃO" mais vezes na nossa vida. E sobretudo no nosso dia-a-dia. É que é o "NÃO" que nos organiza e é a partir da nossa capacidade de recusa que estruturamos a noção de diferença e o reconhecimento da individualidade.
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1. Se a vida fosse a preto e branco era tudo mais fácil. Eventualmente mais monótono, mas seguramente mais fácil. Se fosse... Mas, como não é, temos de, enquanto indivíduos, aprender o que não nos ensinam: gerir a incereteza, remendar pacientemente os buracos das expectativas, aprender a ler nas entrelinhas, saber passar, de vez em quando, por entre os intervalos da chuva. Temos que ao longo da vida, a maioria das vezes sem mestres, descobrir linguagens criptadas e substantivas que se escondem nos dizeres banais de todos os dias. Temos de ir para lá das intenções expressas, das frases de circunstância, dos discursos invasores que constantemente nos querem guiar em direcções desconhecidas que, de repente, são o sítio de moda e o lugar para onde toda a gente vai. Temos de descobrir quem somos, numa encruzilhada estreita em que todos parecem ter opinião, saber quem são e para onde vão.
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2. A maioria de nós não tem como escapar deste efeito de arrastamento e contágio. Construídos como somos, em espelho de outros, reproduzimos, desencadeamos e ampliamos processos de que não sabemos o nome, nem temos a menor noção do alcance e profundidade. A maioria de nós não pode, nem sabe que é possível, desenvolver autonomias relativas. Não se atreve a fugir do cânone nem, de resto, sente necessidade disso a maior parte do tempo. Ocupados como estamos nas nossas vidinhas atribuladas, temos pouco espaço mental para nos questionarmos sobre o que é essencial. Entretidos com os acontecimentos diários que não param e sugam energias, vamos sonhando com uma qualquer noção vaga de tranquilidade e descanso que compramos a preços módicos e em formatos simplificados num qualquer meio de comunicação acessível.
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3. Esquecidos ou desconhecedores de que o "NÃO" é um organizador fundamental da personalidade humana e que é a partir da recusa que se dá o reconhecimento da diferença e o estabelecimento da individualidade, usamo-lo pouco, timidamente e por vezes mal. Cada vez mais o clássico "sei que não vou por aí" parece ser a estrofe final de um lindo poema."
Isabel Leal
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